![Jorge Brochado de Miranda 1.jpg]()
5
Após o jantar, sopa de legumes, arroz de feijão e couves com pedaços de carne, figos e doce de chila, que o convidado nunca mais comera desde a morte da avó, Miguel subiu ao primeiro andar e esqueceu-se do tempo e de si próprio, estava impessoal e sem nome, suspenso no seu alheamento, tudo era sobra neste mundo com personagens caóticas e orgânicas, onde todos eram prisioneiros num ambiente claustrofóbico e insano. Estava na sala de visitas a olhar para as fotos do telemóvel quando sentiu uma respiração na penumbra da sala:
- A curiosidade trouxe-me aqui, - disse uma voz com um travo de tédio, resguardando-se cuidadosamente do olhar daquele mundo de emoções.
- Pai!??
Miguel viu no olhar do Jorge, iluminado pela luz do telemóvel, uma vontade de falar, porque gritava sem voz naquele mundo silencioso onde todos se tinham recolhido. Pai e filho encontravam-se numa encruzilhada da vida com culpas cósmicas, que tinham estilhaçado as fronteiras formais daquele espaço.
- Quem são essas senhoritas bem-parecidas? – Perguntou o jovem com um ar malandro, olhando para a fotografia que ocupava todo o écran do aparelho.
- A Catarina e a Teresa, tuas filhas!
“Tuas”??? Miguel nunca tinha tratado o pai por “tu”. Olhou para ele e sentiu a vida toda, a incompreensão da situação, a incapacidade de falar, uma vontade num ir embora. Sentia-se uma tensão no ar. O ambiente emocional tinha agora tomado uma forma, a fronteira entre a sanidade e a loucura aumentara, sentiu aquele imenso espaço existencial frio. Para o jovem Jorge o Universo era uma máquina lógica e racional, acessível unicamente através dos conhecimentos matemáticos e geométricos, que explicavam a experiência sensível. Miguel sabia que nove anos depois, a 15 de outubro de 1958, o pai, como capitão, iria ultrapassar, nos Estados Unidos, a barreira do som aos comandos dum F-86 Sabre Jet. Mas agora uma força desconhecida, distinta da energia que ele estudara na química e na física, desafiava todas as suas convicções, desde que um senhor de 62 anos aparecera e lhe chamara “pai”, a ele, um jovem adulto com 20 anos. E para baralhar ainda mais a situação o Dr. Mário de Miranda, seu pai, a sua referência, que louvara sempre a razão e a ciência como únicos guias fiáveis da vida, convidara o desconhecido, que o tratava por “avô”, para pernoitar.
- O que é que o senhor faz na vida? – Perguntou baixinho, com vergonha.
- Professor de Educação Física!
- Educação Física?? Que disparate!
- Contou à avó o incidente em Aveiro?
- Incidente em Aveiro??
- Sim, no dia 5 de fevereiro bateu com a asa do avião num mastro dum barco, em Aveiro. Ia a rasar o terreno em direção à base de Espinho.
- Não pode contar isso à minha mãe.
- Eu sei, o avô está sempre a pedir nas cartas para não rasar as copas das árvores quando faz visitas nas horas de voo, fica sempre muito nervosa. E também sei do caso da manga que bateu na água em maio.
- Mas como é possível?
Miguel ligou o telemóvel e mostrou a fotografia dos relatos, manuscritos pelo pai nas suas memórias:
“1949, 5 de fevereiro.
Por alturas de Aveiro, voando a rasar o terreno, com um céu azul puro, sem uma nuvem, uma luminosidade intensa, o sol a refletir-se nas águas da ria, alguns barcos moliceiros de cores vivas a compor aquele quadro de beleza inebriante intensificada por alguns restos de vapores das libações do almoço, embati com a asa direita num mastro de um desses barcos. Foi uma pancada seca de que resultou uma pequena reentrância na asa, e o mastro certamente partido ou caído na água. Não foi mais do que isto e não teve outras consequências. Daí a pouco aterrava em Espinho com a asa ferida, consequência da “descolagem da caça” depois de um lauto almoço.” – Jorge
“19 de maio de 1949
Para rebocar o alvo de tiro ar-ar estava-nos atribuído um avião bi-lugar Miles Martinet, equipado com um dispositivo que permitia accionar o cabo de aço de reboque. O alvo, um saco tipo manga de vento, era largado e recolhido com o avião já em voo por um operador que seguia no lugar de traz. Ainda recordo um dia em que me coube a mim fazer o reboque da manga e o tecto de nuvens, tendo começado a avançar e a baixar do mar para terra como era costume em Espinho em certas épocas do ano, me obrigou a descer para uma altura já fora dos limites de segurança. Em vez de interromper o voo, como aconselhavam as circunstâncias, insisti em continuar um pouco mais até que a manga bateu no mar. Ao sentir no avião a prisão daí resultante tive de fazer rapidamente o que já devia ter feito, abortar a missão e recolher a manga.” - Jorge
O Jorge não disse mais nada quando acabou a leitura, saiu silencioso da sala a abanar a cabeça. O filho ainda teve tempo de olhar para os pés do pai que lhe relembraram as cartas que os avós lhe enviaram no dia 8/11/1948, “a tua mãe vai tratar das meias de lã: quando estiveste dizias que tinhas os pés frios”, em 23/11/1948 “a mãe manda breve as meias não se tem descuidado” e a de 7/12/1948 “a mãe mandou-te pelo Fernando 4 pares de meias de lã.” Lembrou-se que foi um dos últimos pedidos que o pai fizera no hospital à mulher antes de morrer.
- Pai, as meias que a avó lhe mandou aquecem-lhe os pés?
Miguel deixou cair uma lágrima, só uma, e sentiu um vento puxa-lo, teve uma visão imperfeita de algo suspenso na geografia intemporal do sonho. A fraca luz que emanava do candeeiro a petróleo era a única verdade, estava perdido e sozinho. Tentou acordar, mas em vez disso sentiu o cheiro a campo no lusco-fusco, ao mesmo tempo que era embrulhado pela vertigem do sono e pela queda livre da baba na almofada. No silêncio da noite, deitado na cama, fechou os olhos, inspirou profundamente pelo nariz, expirou calmamente pela boca, ao mesmo tempo que tentava focar-se num ponto do seu caótico universo. Por breves segundos ouviu o barulho longínquo do comboio da linha do Estoril, mais nada.
- Quem de vocês fez o que Deus pediu?
Miguel abriu os olhos, estava numa missa. Olhou para o padre e viu o pai.
- O bisavô! – Riu-se.
- O que distingue os homens dos animais é a capacidade de fazer o sinal da Cruz. – disse o padre Joaquim Ribeiro Alves de Miranda voltado para o povo, que lhe respondeu “Ámen”!
O religioso era um homem vergado sob o peso de uma culpa qualquer, crente absoluto nas virtudes do ensino da Igreja, e das verdades teológicas tradicionais, persignando-se três vezes. Sabia que as velhas beatas que iam à missa, em vez de o ouvirem, passavam o tempo a dizer mal das mães dos seus filhos, distribuindo ferroadas impiedosas e escarrando ódio. Diziam que elas iriam ter dificuldade em entrar no reino dos céus. O padre limitava-se a despejar as suas necessidades nas amigas, voltando-se sempre para o lado direito a dormir, sem se preocupar se elas tinham gostado. Miguel estava na última fila no meio do povo descalço, e junto a uma figura de São Francisco de Assis, com uma caixa de esmolas aos pés. onde colocou uma moeda de dois euros. Sentiu um cheiro intenso a azedo, a mijo, a estrume e a suor. Tirou o telemóvel do bolso e leu no écran a data e o local, 1896. Na fila da frente, onde estavam os mais esclarecidos, no banco esquerdo, levantou-se uma senhora que se encaminhou com solenidade para junto do padre. O bisneto viu de novo a cara do pai no rosto dela e tornou a rir:
- “A minha querida irmã” - pensou.
- Salmos, capítulo quarenta, versículo nove, - leu Eufrásia Clemente de Miranda no livro que estava nas mãos do irmão, - e continuou. – “A Tua lei está no meu coração”!
- Na bênção têm de parar a mão uns segundos quando mencionam o Espírito Santo, - avisou o pároco das freguesias de Gestaçô e Teixeira, com cara de poucos amigos, de dedo em riste, apontado para os presentes. – Deus ouve as lágrimas dos que não choram, a Fé pode encontrar-se nos lugares mais impróprios. Olhem à vossa volta, o vosso mundo é bom? Será maldoso? Quem é culpado? Quem é inocente? Quem são vocês? Olhem para os vossos vizinhos e vejam-se a vós mesmos neles, cada um refletido no outro. Se vieram aqui para receber, sairão pobres, se vieram para entender, sairão perdidos. Se Deus é tudo, então temos em nós divindade.
- Deus é paixão, é intenso, é a Palavra feita carne, - continuou Eufrásia.
O bisavô voltou-se para o crucifixo que estava por cima do altar e disse:
- Misereatum mostri omnipotens Deus et, dimíssus pecatis nostris, perducat nos ad vitam alternuam.
Os calçados responderam “Et cum spiritu teo”, os descamisados limitaram-se a grunhir. A fila da frente estava ocupada pelos 9 filhos do vigário, de que todos sabiam e ninguém falava, frutos de lascívia carnal, que o levava sempre a questionar sobre o que acabara de fazer em alcofa alheia. Exceção para Rosa Pinto que dizia em voz alta serem os seus seis petizes “filhos do padre”: a Christina Augusta, de 30 anos, filha da Ana Miranda, com o meio irmão Aflalo de 2 anos ao colo, tendo ao seu lado outro meio irmão, o António Augusto de 20 anos, seguido do irmão Manuel Augusto de 26 anos, o Augusto Adelino e a Leonor Augusta de 18 anos, não por serem gémeos, mas sim filhos de mães diferentes, o rapaz da Maria Barbosa e a rapariga da Rosa Pinto. Seguia-se a Albertina Augusta de 16 anos, o Mário de Miranda de oito e a Dulce Augusta de cinco, todos filhos da Rosa.
- Diz a lenda que foi no Santuário de La Verna que São Francisco de Assis, - exclamou o sacerdote apontando para a figura que estava num nicho, e continuou, - recebeu os estigmas no dia 17 de setembro de 1224. Cristo ama o que é eterno em cada um de nós, - e desenhou uma cruz no ar.
De repente o telemóvel, que já tinha sido guardado cuidadosamente no bolso, começou a tocar uma música:
- “Senhor faz de mim um instrumento da vossa Paz, onde houver ódio, que eu leve o amor ….”.
Miguel nem queria acreditar no que acontecera, toda a assistência se voltou para ele, mais propriamente para o santo, a cantiga continuou, o bisavô estendeu os braços para o céu, a irmã ajoelhou-se e gritou “milagre”, várias beatas acenderam velas, o tio avô Aflalo aproveitou-se da posição da irmã Christina, que se benzia em desespero e fugiu do seu colo, correndo para a saída, sendo perseguido pelo avô Mário de Miranda, de 8 anos, até que se ouviu um anúncio ao “Mac Chesse”, e foi nesse momento que o indicador do Miguel conseguiu desligar o telemóvel que permanecera no bolso. Um silêncio ensurdecedor cobriu o espaço, ninguém se mexia, ouviam-se corvos a crocitar no exterior, até que o padre fez um estalido impaciente com a língua, e proclamou:
- Obrigado meu Deus pelo Teu sinal, o povo de Gestaçô curva-se perante Ti.
A harmonia da missa foi substituída por um caos feito de gritos em voz alta. O povo correu para junto da caixa das esmolas como forma de se salvar do fim de alguma coisa. No exterior as pessoas olhavam em transe para o Sol e ajoelhavam-se.
- Está a rodopiar, - gritavam alguns.
- O nosso santo cantou, Clemente, - disse Eufrásia agarrando-se com força ao irmão. – Faz-me um favor, quando eu morrer enterra-me neste lugar sagrado. Promete-me!
Eufrásia iria ser sepultada perto da porta lateral esquerda da igreja de Gestaçô no ano seguinte. A canção tinha sido uma escolha da Inteligência Artificial da aplicação do “H3”, após a análise dos dados do telemóvel, a data, o local, o tempo e a ocasião. Miguel olhou para a entrada da igreja e reparou que numa parede estava pendurada uma túnica amarela com duas cruzes vermelhas.
- É do Francisco da Maria Azeitona, o Santo Ofício descobriu que andava com duas mulheres e a corda do pescoço tinha três nós, - disse uma mulher vestida de negra, dos pés à cabeça, com um cheiro azedo, benzendo-se.
- Santo Ofício? – Pensou. – Inquisição? Onde é que estou?
Olhou para o telemóvel que indicava “Coimbra 1759”. Recuara no tempo. Leu no Google que aquele fato se chamava “sambenito”, e que os nós que o desgraçado do Chico levara na corda, como dissera a velha, representavam cada um 100 chicotadas. E na pesquisa conseguira descobrir que estava junto à igreja de Santa Cruz, e os arquivos do Santo Ofício de Coimbra com processos registados. O Francisco Joaquim Vasconcelos, agricultor, fora investigado pelo familiar do Santo Ofício da Inquisição de Coimbra, João Cardoso Brochado da Fonseca, capitão das Ordenanças, proprietário da Quinta de Palmazões, em Padronelo.
- Estás aqui neste momento, porque sempre estiveste aqui neste momento, - disse-lhe uma jovem mulher, pondo-lhe uma mão no ombro direito.
Voltou-se e esta apresentou-se:
- Felismina Sara da Providência Nogueira, mulher do teu tio-avô Aflalo.
- Mas …
- Nem nasci e já morri para ti, há muito tempo …
- E muito nova …
- 38 anos! O Aflalo irá viver mais 29 anos.
- Quero fazer o testamento, estou no “cabo da vida”, - pediu alguém deitado numa cama, um novo cenário, 18 de abril de 1654.
- Domingos Monteiro, que casou em fevereiro de 1615 com Ana Cardoso proprietária da Quinta de Palmazões, herdeira do irmão António Cardoso, que faleceu solteiro em vinte de janeiro de 1611, - explicou a tia-avó Felismina, e continuou. – Devemos passar pelo sonho como a abelha pela flor.
- Manuel Manha, - chamou o cocheiro da diligência da manhã em Gestaçô.
- Manuel Manha??? – Interrogou-se Miguel, olhando para um “rapaz forte, bem-encarado, solteiro”.
Lembrou-se da descrição do bisavô na carta que enviara em 25 de junho de 1912 para o filho Mário de Miranda, que estava a estudar medicina em Lisboa e residia na rua da Prata, nº 108, 4ºE.
- Manel, não, - gritou o Miguel levantando os braços.
Ele olhou, à medida que avançava para a diligência, sendo de imediato colhido por um chifre dum dos bois que espantava as moscas, que lhe penetrou no lado direito do peito, caindo de imediato e morrendo. A morte, teria sido do destino, ou da distração devido ao grito do desconhecido? O mistério da vida não é um problema para resolver, mas uma realidade a experimentar. Temos de avançar com o fluxo deste processo juntando-nos a ele. Miguel acordou, após ter-se sentido um sonâmbulo a atravessar a neblina de um sono longo, com o barulho das rodas de um carro de bois a chiarem, e quando abriu os olhos viu o rosto de uma mulher de buço a olhar pela janela. Suspirou! Bateram à porta, era uma criada a informar o hóspede de que o pequeno-almoço iria ser servido no andar de baixo. Ao sair da porta quase foi abalroado por um jovem de óculos com um penico na mão, cheio de urina, e um polegar mergulhado no líquido:
- Desculpe, desculpe, - e continuou em passo acelerado até à casa de banho.
- Tio Fernando, - riu-se.